Escolhas racionais
Renato Sant’Ana
Quem tem um coração justo deseja a inclusão indiscriminada de todos. Mas imagine que você vai fazer uma cirurgia cardíaca de alto risco, e que lhe cabe escolher, porque assim dispõe o hospital, entre ser atendido por (1) médico especialista ou (2) médicos de sua preferência segundo o sexo, raça, religião ou ideologia. Claro, é insólito. Mas vale como exercício de raciocínio. Será que alguém, com apenas um pingo de juízo, marcaria a opção 2? Adotaria um critério político e não técnico? Que dúvida! Na hora de ser "operado", todo mundo quer o melhor especialista sem ligar para a sua religião, cor da pele, orientação sexual ou ideologia: só importa que ele tenha muita experiência e pleno domínio do procedimento cirúrgico. É uma escolha pragmática: técnica, não política.
Igual pragmatismo, se queremos ser racionais, aplica-se a muitos outros casos, como, por exemplo, à designação de magistrados. Aí o critério é da sociedade. Mas o exercício de raciocínio é do cidadão: se você moveu uma ação judicial por ter sofrido uma injustiça, vai querer que ela seja julgada num (1) Judiciário formado por juízes imparciais e com sólida formação jurídica ou (2) num Judiciário formado por juízes representativos de diferentes "grupos sociais" (como acontece agora no México)?
É o canto da sereia: "Diversidade, representatividade, mais democracia. As sereias escondem que juízes eleitos por "representatividade" (o que põe em segundo plano a formação jurídica) são mais propensos a agir com a visão parcial do segmento que representam. No México, a ideologia dominante impôs eleições para juízes. Em vez de critérios objetivos e técnicos, entrou o mais obscuro da política. Querendo ou não, o povo entregou ao Estado a sua liberdade, seu futuro, seu destino. Resultado, um grupelho domina o Estado e, por extensão, a vida privada de todos.
Pois o México realizou eleições para nomear magistrados, desde juízes de comarca até ministros da corte suprema - critério político para designar quem deverá interpretar a lei e dizer o que é direito. Só que a interpretação da lei não deveria basear-se nas crenças do intérprete nem no compromisso de representar isso ou aquilo, mas no exercício da hermenêutica, contemplando o direito e suas fontes (inclusive e acima de tudo a lei). É um trabalho técnico que requer ciência e método.
Para a "democracia fake" da patota que tomou o México, "as minorias" têm de estar representadas no Judiciário. Por isso, a propaganda oficial do governo exalta as eleições (com participação de 12% dos eleitores, nada além) que colocaram mais mulheres e um indígena na corte suprema - como se o sexo e a etnia fossem credenciais para integrar o tribunal.
Ah, mas nos Estados Unidos não tem eleição para juiz? Ora, façam o favor de copiar o que os americanos têm de bom! Podem começar pelo respeito à liberdade de expressão, coisa que o governo do México e assemelhados odeiam. Aliás, um Judiciário viciado é letal para a liberdade.
Dos 50 estados americanos, 38 têm eleições para juízes. Muitos juristas respeitáveis acusam uma crescente politização nesse processo, com danos para o real espírito da Justiça. Milhões de dólares são investidos na eleição de juízes, que, eleitos, terão de satisfazer os investidores. E olhem que se está falando de um país cuja Suprema Corte não reinventa, mas defende uma Constituição que está em vigor desde o séc. XVIII. Como será no México e outros países da América Latina onde a Constituição é torcida e moldada como massa de modelar?
Não é difícil imaginar o poder econômico pondo dinheiro na eleição de juízes. O mercado tem a mania de jogar conforme as regras do jogo... Também dá para imaginar, no México e onde mais seja, o crime organizado investindo na eleição de magistrados. A quem convém isso?
Só haverá "independência do judiciário", o que é condição da democracia, se os juízes estiverem blindados contra pressões políticas e financeiras e, por conseguinte, com liberdade para julgar com base apenas nos fatos e na lei e para contrariar interesses pouco republicanos da mídia, de organizações em geral e de indivíduos influentes. Tal independência tende a deixar de existir com a politização na escolha dos magistrados. Em suma, a magistratura tem de ser resguardada como carreira de Estado para não virar órgão de governo nem estar sujeita a manipulações.
Não é o que deseja o governo mexicano, que segue diretrizes do nefasto Foro de S. Paulo. O truque da eleição visa recrutar juízes (inclusive da corte suprema) alinhados com seu projeto autoritário. E, é claro, as elites intelectualizadas (grande parte da imprensa, a sedizente classe cultural e, sobretudo, a parasitária casta acadêmica) estão exultantes com o que chamam "reformas", principalmente alterações no ordenamento jurídico para consolidar um assustador regime totalitário. Ou seja, as paixões políticas e o egoísmo rasteiro venceram a racionalidade. (Foto: Reprodução)
Renato Sant’Ana é advogado e psicólogo - sentinela.rs@outlook.com